Os pais com filhos em escolas privadas precisam
saber que não é possível criar uma ilha da fantasia que produz prêmios
Nobel em meio a um sistema público esfacelado
Miguel Candia/Veja
A privatização não é panaceia: No Chile, a competição se deu na seleção dos melhores alunos, o que não eleva o nível do ensino em geral Eu tive o privilégio de estudar em boas escolas particulares. Só quando
fui cursar uma universidade de ponta nos Estados Unidos é que entendi
quão deficiente minha escolaridade havia sido.
Meus colegas indianos haviam lido Shakespeare e Dante para a escola. Na
minha, lemos Lima Barreto e Adolfo Caminha. Os chineses e os russos
tinham uma intimidade com a matemática que lhes permitia visualizar a
relação entre equações e as formas espaciais que elas descreviam. Para
mim, matemática era só pegar lápis, papel e resolver um problema. Os
dados estatísticos mostram que as deficiências da minha escola são
compartilhadas por milhões de alunos de todo o país.
No Enem de 2008 (inacreditavelmente, o último ano disponível), as
escolas privadas atingiram a média de 56 pontos, em uma escala que vai
até 100. Ou seja, mesmo nessas escolas os alunos dominam pouco mais da
metade das habilidades que deveriam. Se olhamos para o Pisa, o teste
internacional de educação mais respeitado do mundo, que mede o
aprendizado de jovens de 15 anos, os problemas são parecidos. O
desempenho em leitura dos 25% dos alunos brasileiros mais ricos é
inferior ao desempenho do aluno médio dos países desenvolvidos e é
também inferior ao dos 25% mais pobres de lugares como Coreia do Sul,
Finlândia, Hong Kong e Xangai. Se comparamos o desempenho dos 10% mais
ricos do Brasil com o dos 10% mais ricos dos países desenvolvidos, a
diferença que nos separa é equivalente a quase um ano de escolaridade. É
como se a elite daqueles países estudasse um ano inteiro a mais que a
nossa. Esses resultados ficam mais visíveis no ensino médio, mas as
dificuldades começam antes. A recente Prova ABC, com crianças de 8 anos,
mostrou que já nessa idade 21% dos alunos de escolas privadas não
alcançam o desempenho mínimo esperado em português e 26% em matemática.
Como se explica, então, que a maioria dos pais de alunos das escolas
privadas esteja satisfeita com a qualidade da escola dos filhos e que
não se vejam muitos movimentos pela criação de mais escolas de ponta na
rede privada que se equiparem àquelas dos países desenvolvidos? Suspeito
que a resposta tenha muito a ver com algo que os alemães magistralmente
chamaram de Schadenfreude: a satisfação diante da desgraça alheia. Os
pais com filhos em escolas privadas se satisfazem com o fato de a
educação pública ser ainda pior. Se no Enem as escolas privadas só
chegam a 56 pontos, as públicas não passam de míseros 37. Se na Prova
ABC um em cada cinco alunos das escolas privadas não atinge o nível
esperado de aprendizado, o que dizer dos alunos da escola pública, em
que mais da metade não atinge esse nível em leitura e dois terços em
matemática?!
Se você é um típico pai ou mãe de aluno de escola particular, é grande a
possibilidade de que ache que já está fazendo tudo o que pode ao
trabalhar duro para pagar uma boa escola. O aprendizado, você acha que é
obrigação da escola. Cada vez que você lê sobre alguma avaliação
educacional, acha que o problema é de quem estuda em escola pública. Ao
ver os resultados desses testes e não encontrar a escola de seu filho
nas piores posições do ranking, você tem a reconfortante sensação de que
seus esforços estão dando resultado, de que, na competição que é o
mundo moderno, a educação que você consegue oferecer a seu filho já lhe
dá uma grande vantagem.
Tenho más notícias. Primeira: os tempos mudaram, e a arena de
competição desta geração não é mais o Brasil, mas o mundo. Se seu filho
for despreparado, vai perder o emprego para um indiano, australiano ou
chinês. Você talvez sinta pena dos alunos das escolas públicas, mas os
chineses e finlandeses sentem pena de você. Segunda: o desempenho
superior da escola de seu filho se deve mais a você do que à escola.
Naercio Menezes, do Insper, fez uma análise econométrica dos dados do
Saeb e nela demonstra que dois terços da diferença de desempenho entre
os alunos das escolas públicas e os das particulares são atribuíveis ao
nível socioeconômico dos pais. As escolas privadas não são muito
melhores do que as públicas. A grande diferença é que atendem um público
mais pronto para aprender.
Por que esse déficit de qualidade, mesmo na rede paga? Primeiro, porque
o sistema brasileiro de formação de professores é péssimo. A futura
professora sai da faculdade despreparada. A escola particular ainda tem
uma certa vantagem por poder contratar os melhores, pagar a cada um de
acordo com o seu desempenho, demitir os piores e impor métodos e
cobranças. Assim consegue uma vantagem, mas não tem como tirar leite de
pedra. Em segundo lugar, a escola sofre com a pouca cobrança e
participação dos pais. Se os pais desencanam do aprendizado dos filhos, o
horizonte de possibilidades da escola é reduzido.
Quais as consequências práticas? Os radicais de esquerda, que praguejam
contra a “mercantilização do conhecimento” e pregam a estatização do
ensino, devem saber que as escolas privadas representam, sim, um ganho
de aprendizagem para seus alunos, ainda que menor do que se imagina. A
hipótese de que a rede privada prejudica a rede pública não se confirma.
Estudos em diversos países mostram que a concorrência com o sistema
privado faz bem às escolas públicas, aumentando sua qualidade e elevando
o salário dos professores, mas na maioria dos casos o impacto é
pequeno. (Os estudos estão disponíveis em
twitter.com/gioschpe.)
Também erram aqueles que acham que a privatização do ensino seria a
panaceia. Um estudo sobre o sistema chileno, que privatizou grande parte
de sua educação básica, mostra que o caminho preferido das escolas para
competir é a seleção dos alunos. Se a escola consegue atrair os
melhores, provavelmente será a melhor. Dificilmente o Brasil daria o
salto educacional de que precisa apenas com a privatização das escolas:
haveria grande concorrência pelos melhores alunos, mas isso não
necessariamente melhoraria o nível do ensino como um todo. Sem falar no
papel da escola como ambiente socializador e desenvolvedor de uma
identidade nacional. Ou seja: o sistema misto e liberal do Brasil está
no caminho certo e deve ser protegido dos ideólogos.
No plano micro, quais as lições aos pais? Em primeiro lugar, a de que
precisam participar mais da educação dos filhos e se preocupar mais com o
aprendizado em termos absolutos e menos com a vantagem da escola deles
em relação à escola de seus amigos ou às escolas públicas em seu redor.
E, mais importante, os pais precisam saber que não é possível criar uma
ilha da fantasia que produz prêmios Nobel em meio a um sistema público
esfacelado. Pois é o sistema público que forma os professores de seus
filhos. Precisamos pensar como país, encarar o problema de forma
sistêmica. Ou resolvemos o problema de todos, ou vamos acabar não
resolvendo o de ninguém. No ano que vem haverá eleição municipal. Que
tal escolher seu candidato com base no desempenho das escolas que ele já
administrou?
Fonte: Veja Online - Educação