Blog da Escola de Referência e Educação Jovens e Adultos Amaury de Medeiros

.

11 de dezembro de 2009

DESTRUINDO MITOS

Escrito Por: Daniel Lopes - Publicado originalmente no blog Amálgama.

Não lembro bem o ano e a série, mas, quando eu estudava em uma franquia do Sistema Anglo de Ensino, tive um professor de Gramática chamado Lucídio – fã de Raul Seixas e do Galo de Minas.

Durante dois meses, as aulas resumiram-se ao seguinte: o professor dividia o quadro de acrílico em cinco ou seis partes verticais, em cada uma escrevia uma frase relativamente grande, fazia com o pincel um retângulo em volta de cada palavra e, de cada retângulo, puxava uma seta para cima ou para baixo.

Então começava a chamar os alunos, um por um. Estes tinham que ir rumo a uma das frases e, na ponta de cada seta, dizer que função cada palavra desempenhava na oração, com riqueza de detalhes. Por exemplo, “objeto-direto-portanto-passivo-ativo-apenas-nos-finais-de-semana”, etc.

O pincel do professor Lucídio caiu duas vezes em minhas mãos. Na primeira eu passei adiante. Na segunda também. Só que da segunda vez ele me perguntou por que eu não ia até o quadro, como (quase) todos os outros. Eu disse que era porque não entendia nada daquilo da função das palavras, e que por exemplo naquela frase ali eu só sei que o “a” é um artigo definido.

Ele riu, assim como alguns na turma, mas depois se recompôs e disse que não era hora de fazer piadas. (E olha que não era uma piada!) Com ar douto, pregou então que, enquanto eu não soubesse destrinchar e classificar nitidamente os termos que compõem uma frase, não estaria hábil para me fazer entender por meus concidadãos, fosse através da fala ou da escrita.

Passei dias e dias tomado de certa angústia. Eu odiava colégio e odiava professores. Só gostava das aulas de futsal e do professor de futsal. Mas, mesmo sabendo que professores são metidos a uma conversa fiada, a perspectiva de que os outros não me entendessem mais me deixou muito pra baixo. Ia até o livro de gramática, tentava compreender os capítulos, não conseguia, e a angústia aumentava. Muito em breve meus pais e colegas não mais entenderiam o que eu queria dizer.

*

Marcos BagnoPor que lembrei disso tudo agora?

É que recebi dias atrás da Anna Raíssa, uma amiga que está se formando em Letras na Universidade de Brasília, o livro Preconceito lingüístico – o que é, como se faz (Edições Loyola).

Não deixa pedra sobre pedra. É uma dinamite.

Sabe aquele livro que você começa a ler e diz, “como é que eu não li isso antes?”. Pois é.

O autor é Marcos Bagno, que foi professor da minha amiga. A obra foi lançada primeiramente em 1999 e desde então virou um clássico, indispensável para estudantes de Letras e a qualquer outro que queira se posicionar no debate sobre as questões da língua brasileira – ou português do Brasil. O volume que ganhei de presente é do ano passado, a 49ª edição. Você não deve ter dificuldades de encontrá-lo na biblioteca de sua universidade.

Bagno é o tipo de sujeito que acumula imensos conhecimentos para destruir o esnobismo, e não para cultivá-lo. Você pode medir o sucesso de uma universidade, ou de uma nação, pela quantidade de Marcos Bagnos que ela possui.

Infelizmente, nessa equação o Brasil não se sai muito bem. Para cada Marcos, parece haver cem Dad Squarisi. Em 1996 ela publicou um artigo no Correio Braziliense – depois reproduzido em diversas outras publicações – no qual repercutia favoravelmente a declaração que o então presidente Fernando Henrique Cardoso dera em Portugal, de que os brasileiros somos todos “caipiras”, designação que para Dad/FHC (eu quase deixo sem o [/]) tem uma carga negativíssima.

Caipiras somos porque maltratamos o português de Portugal, todos os dias, todas as horas, em casa e na rua.

O posicionamento da articulista – fã do ex-presidente – traz, junto com o preconceito lingüístico, o preconceito social mesmo, dirigido a nordestinos, interioranos paulistas e a qualquer outro que não fale o português como José de Alencar o escrevia. Os termos que usa para denegri-los são: “jecas-tatus”, “deslumbrados”, “tupiniquim”, “capiau”, “tabaréus”… Todos falando, não o português, mas o “caipirês”, nessa enorme “Caipirolândia”.

Longe de ser um caso isolado, a ira mal disfarçada de Dad Squarisi é apenas uma amostra do que encontramos em discursos oriundos dos meios dito cultos. Seu patriarca é Napoleão Mendes de Almeida, falecido em 98, tido como um “defensor intransigente da língua”. No Dicionário de questões vernáculas, vocifera que

Os delinqüentes da língua portuguesa fazem do princípio histórico “quem faz a língua é o povo” verdadeiro moto para justificar o desprezo de seu estudo (…). Cozinheiras, babás, engraxates, trombadinhas, vagabundos, criminosos é que devem figurar, segundo esses derrotistas, como verdadeiros mestres de nossa sintaxe e legítimos defensores do nosso vocabulário.

Em Napoleão como em outros, a Gramática é uma entidade sagrada, tal qual a Bíblia e a Constituição, e deve ser o único Livro a reger o modo de falar de todos os indivíduos que moram dentro das fronteiras da Pátria, do Oiapoque ao Chuí. Sem seu conhecimento integral, é impossível sequer falar razoavelmente, o que dizer escrever…

Não importa que Carlos Drummond de Andrade se considerasse um ignorante em coisas de gramática e que Machado de Assis tenha tomado um susto ao abrir a gramática do sobrinho e “não ter entendido nada”¹. E daí se a Ilíada e a Odisséia foram escritas 400 anos antes de surgir a primeira gramática grega (e do Ocidente)?

*

O que ocorre é que entidades como Luiz Antonio Sacconi, autor de um abominável Não erre mais!, querem confundir gramática normativa com língua. Quando na verdade, como esclarece Marcos Bagno, a gramática é apenas a ponta do iceberg. Apelando para as terras amazônicas – repleta de caipiras incultos –, o autor encontra a metáfora perfeita para dissociar a língua portuguesa da gramática portuguesa:

(…) enquanto a língua é um rio caudaloso, longo e largo, que nunca se detém em seu curso, a gramática normativa é apenas um igapó, uma grande poça de água parada, um charco, um brejo, um terreno alagadiço, à margem da língua.

Não se trata de desprezar os frutos que o ensino da gramática podem gerar, mas esta deve estar ancorada na realidade nacional. Por exemplo, “vende-se casas” já é há muito amplamente usado no Brasil, mas os gramáticos insistem em corrigí-lo para “vendem-se casas”. Nesse caso em especial, Bagno cita vários estudos de linguistas nacionais para defender que

na língua falada no Brasil, no português brasileiro, ocorreu uma reanálise sintática nesse tipo de enunciado, isto é, o falante brasileiro não considera mais esses enunciados como orações passivas sintéticas. O que a gramática normativa insiste em classificar como sujeito, a gramática intuitiva do brasileiro interpreta como objeto direto.

É um caso típico em que os “donos” do português deveriam se render à realidade dos fatos. Mas não. Preferem reduzir a nada o linguajar “fácil” das ruas para defenderem com unhas e dentes uma língua hermética, compreensível apenas… para eles próprios! Surge daí o mito da dificuldade do idioma.

Sustentar que “português é muito difícil” é cavar uma profunda trincheira entre os poucos que “sabem a língua” e a massa enorme de “asnos” (termo usado por Luiz Antonio Sacconi em seu livro Não erre mais!) que necessitam, assim, do “auxílio” indispensável daqueles “mestres” para saltar com segurança por sobre o abismo da ignorância.

“Asnos” não é o único adjetivo que Sacconi usa para rebaixar aqueles que se comunicam muito bem entre si sem ter que recorrer à norma culta. De fato, Sacconi é uma espécie de Reinaldo Azevedo do mundo dos gramáticos e, no livro citado, dispara também contra caminhoneiros, jornalistas, vaqueiros, roqueiros, grevistas, petistas, caipiras e todos aqueles que maculam o língua-pátria com sua praticidade. Ah sim, eu já ia esquecendo da influência maléfica do “elemento africano” na língua nacional.

Aliás, hilariamente deduz-se que, para Sacconi, a língua “nacional” seria ainda melhor (mais “pura”) se não tivesse sofrido o contato com os negros e índios – e, posteriormente, italianos. Só sobrariam assim os portugueses. Mas, para seu desalento, ainda em 1997, a pesquisadora Maria Marta Sherre descobriu que também em Portugal, através dos classificados de jornal, “vende-se andares no lumiar” e “aluga-se escritórios”. Uma lástima.

E pensar que Camões um dia escreveu “pubricar”, “pranta” e “frecha”. O mundo não faz sentido.

¹ Os casos de Drummond, Machado e outros escritores “analfabetos” estão em Língua e liberdade, de Celso Pedro Luft.

2 comentários:

André Lemos disse...

Excelente texto. Parabéns.
Eu tenho este livro (Preconceito linguístico) e gostei muito.

Leonardo Gueiros disse...

Hahaha, "Preconceito linguístico" é uma rasteiras nos recém-ingressos alunos do curso de Letras. Desconstrói muita coisa que ainda está crislizada na cabeça da gente, enquanto seguidores de uma tradição gramatical. Vale a leitura.

Twitter Delicious Facebook Digg Stumbleupon Favorites More

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Affiliate Network Reviews